Ao fazer o texto sobre a Mclaren MP4/7,
um amigo, o Roberto Taborda, me lançou o desafio: já que você
falou sobre a Mclaren “ruim”, por que você não fala da F92A?
A Ferrari F92A é lembrada por ter sido
um verdadeiro fiasco. Quando da apresentação, todos ficaram
impressionados pelo seu aspecto bojudo, com laterais lembrando um
caça e o famoso “fundo duplo”. Mas toda a expectativa foi gorada
e a equipe italiana marcou somente 21 pontos, mesmo assim garantindo
o quarto lugar no campeonato de construtores.
Larini, Capelli, o F92A, Alesi e Morbidelli: no início, só sorrisos. Mas... |
E na mesma linha do texto da Mclaren, é
preciso recuar um ano para entender o contexto que envolvia a Ferrari
para ver no que desaguou no 92 tenebroso...
A Ferrari teve um 91 no mínimo
agitado. Após ter encerrado 90 como a principal caçadora de
Mclarens, os italianos surgiram como um dos principais favoritos. A
equipe começou a temporada com uma versão revisada do 641/2, o 642,
supervisionado por Steve Nichols, que havia chegado da Mclaren na
temporada passada.
Para ladear Alain Prost, vinha Jean
Alesi, revelação da Tyrrell e que foi disputado com a Williams,
motivando o pagamento de um pesado valor para sua liberação. Cesare
Fiorio, o chefe de equipe, vinha cheio de esperança e os resultados
da pré-temporada davam toda razão para otimismo.
Mas quando a temporada começou, a
realidade atropelou a Ferrari com força: Mclaren e Williams se
mostraram muito mais fortes e os italianos pareciam impotentes para
reagir. Com a pressão, as relações entre Fiorio e Prost, que não
haviam terminado 90 muito bem, se deterioraram com rapidez. E
chegamos à terceira corrida de 91, em San Marino....
Embora fosse oficialmente Gp da República de San
Marino, Imola era na Italia, portanto um GP caseiro para a Ferrari. A pressão era enorme
e a equipe trazia um carro revisado para esta prova, testado com
relativo sucesso nos testes FOCA realizados alguns dias antes da
corrida. A classificação acabou sendo bem satisfatória, com Prost
ficando em terceiro, menos de 3 décimos atrás do pole Senna. O
domingo chegou e uma chuva antes da prova encharcou a pista...e a
história foi escrita como pode ser vista a seguir....
Não bastando o “show” do
professor, Alesi abandonou após 3 voltas. E a tempestade começou em
Maranello. Numa sequencia, Cesare Fiorio foi defenestrado logo após
Monaco e no Canadá, o responsável pelos motores, Claudio Lombardi,
assume o timão. Não bastando, a Fiat intervem mais uma vez e muda o
comando da empresa, tirando Piero Lardi, o filho bastardo de Enzo
Ferrari. Luca de Montezemolo voltava para sacudir a parte esportiva e
industrial.
Nesta confusão, a área técnica se
dividiu: o aerodinamicista Jean Claude Migeot, após 3 anos e uma
passagem pela Tyrrell, volta à Maranello. Steve Nichols ficou
responsável pelo desenvolvimento do carro de 92 e o francês teve a
missão de remendar o carro atual, fazendo em tempo recorde o 643,
que nada mais era do que o 642 com um bico alto no estilo Williams,
estreando no GP da França.
A Ferrari 643 |
O projeto do 644 iniciou aí. Mas o
descontrole de cima estourou na parte técnica: Embora formalmente
fosse o Diretor Técnico, Nichols foi suplantado por Migeot. O
francês era responsável pela aerodinâmica e delimitou que o carro
usaria o conceito desenvolvido por ele e por Harvey Postlewahite no
Tyrrell 019 e que depois foi usado por John Barnard no Benetton B191
: o bico alto ou “tubarão”.
Com os recursos quase infinitos de
Maranello, Migeot pensou : por que não ir além?
E ele foi: no túnel de vento, Migeot
potencializou o conceito criado por ele mesmo. E concebeu, depois de
Colin Chapman, um carro com duplo fundo.
O regulamento previa que o carro tinha
que ter um fundo plano. Em seus estudos, Migeot desenvolveu uma
espécie de vão nas laterais no espaço entre o fundo regulamentar e
o fundo curvo, recriando uma espécie de “efeito solo”. A
intenção era que o ar passasse debaixo do carro o menos imperturbado
possível, potencializado por um difusor traseiro para prender mais o carro no chão. Na teoria, lindo.
Mas na prática...
Internamente, Nichols se viu atrelado
àquele conceito e desenvolveu o monocoque em torno disso, embora não
concordasse. Para conseguir materializar a idéia das laterais,
muitas horas foram gastas para ajustar a posição dos radiadores,
cerca de 15 cm mais altos do que os outros. Além disso, foi
concebido um novo motor V12 e um câmbio longitudinal de 6 marchas,
todos montados mais alto para dar espaço a um difusor especial para
aproveitar este ar.
Para completar, a Ferrari também
introduzia uma suspensão monoshock (um único amortecedor) com
controle de altura, controle de tração e prometia um novo câmbio
de 7 marchas no decorrer da temporada.
Quando da apresentação, em janeiro de
1992, todos ficaram impressionados com o F92A (“uma nova era merece
um novo nome”, disse Montezemolo). Para comandar aquele carro tão
insólito, foi contratado o italiano Ivan Capelli para ser o
companheiro de equipe de Jean Alesi. Nicola Larini e Gianni
Morbidelli seriam os pilotos de teste, especialmente responsáveis
pelo desenvolvimento da suspensão ativa, que engatinhava nas terras
italianas.
Nos primeiros testes, a desilusão: o
carro era difícil de acertar, mostrava problemas sérios de
estabilidade e ainda mostrava ser pesado e ter problemas de consumo.
Capelli, em uma entrevista recente, disse que se viu pressionado.
Inicialmente, o italiano testou o 643 e achou um salto à frente do
Leyton House que havia pilotado em 91. Quando dirigiu o F92A, o mundo
caiu: achou o carro pesado, com falta de potência e resposta e não
conseguia colocá-lo da sua maneira. Mas Alesi testou logo após e
disse que “era o melhor carro que já havia pilotado”.
Assim começaram a temporada e viram
que Capelli tinha mais razão do que Alesi. Um pouco antes de
Kyalami, descobriram um problema de projeto no sistema de
lubrificação, que, graças a força centrífuga, ficava sem óleo
nas curvas lentas. E foi este o motivo que fizeram abandonar a
corrida, após uma pálida participação, com Alesi e Capelli
lutando pelo 4º lugar e sendo suplantados pena Benetton, que ainda
corria com uma versão modificada do carro de 91.
Como não era possível reverter aos
motores de 91 por conta do projeto, os italianos iam ter que conviver
com isso até o início da fase européia. No México, a coisa ficou
pior: Alesi se classificou em 12º e Capelli em 20º, ficando atrás
das Dallaras que usavam motores Ferrari antigos. Como desgraça pouca
é bobagem, Capelli se envolveu numa confusão com Karl Wendlinger e
fez um pouco mais de 200m de corrida. Alesi se arrastou na 5ª
posição e abandonou um pouco antes do meio da prova, após ter sido
ultrapassado pelo Andrea de Cesaris em um manco Tyrrell/Ilmor...
No Brasil, apareceu Niki Lauda nos
boxes, que agora tinha papel de “consultor”. Coincidentemente as
coisas melhoraram e os dois carros chegaram ao fim, marcando os
primeiros pontos da equipe no ano. A fase européia começava a
seguir na Espanha e Alesi se aproveitou das condições de pista
molhada e fez uma corrida demoníaca, chegando em terceiro lugar!
As esperanças se renovaram para San
Marino, onde um motor revisado e um novo cambio transversal iriam ser
usadas. Nos testes de duas semanas antes, Alesi conseguiu ficar a
“somente” 8 décimos de Mansell e sua “Williams de outro
mundo”. Mas na corrida, a dupla ferrarista só conseguiu uma 4ª
fila e um abandono duplo...
A esta altura, o ano já era dado como
perdido. E a pressão se avolumava sob Capelli, que não vinha
mostrando bom desempenho. Como dito anteriormente, ele não se sentia
a vontade no carro e não conseguia se adaptar. Talvez isso explique
o inacreditável acidente em Monaco e a “pregada” no muro no
Canadá (vídeos a seguir). E para completar, Alesi conseguia mais um
terceiro lugar...
Neste tempo, um outro conhecido
ferrarista reaparece: Harvey Postlewhaite. Após anos na Tyrrell e no
programa do Grupo C da Mercedes, o inglês retornava à Maranello
para o lugar de Steve Nichols. E sua primeira tarefa foi tentar
entender o F92A para ver o que conseguia ainda se salvar. Enquanto
isso, Alesi e Capelli iam sofrendo...o máximo que conseguiam era um
5º lugar (Alesi na Alemanha) e um 6º (Capelli na Hungria).
Na Hungria, a Ferrari anunciou outro
retorno: John Barnard. Ele ficaria responsável pela área técnica
da equipe. E criou-se um grande questionamento, já que Postlewhaite
estava trabalhando e havia saido da equipe anos atrás por se sentir
desprestigiado. A solução encontrada foi deslocá-lo para a área
de operações de corrida e fabricação de carros...
Mas alheio à confusão, foi lançado
para o GP da Itália o F92AT, revisto por Postlewhaite: O carro
trazia novos aerofólios, um fundo revisado, um motor novo e um
câmbio transversal de 7 marchas (o T do carro é de transversal).
Com as alterações, Alesi chegou a ter a 2ª posição no grid até
pouco antes do encerramento, quando Senna aprontou uma das suas. Mas
a corrida da Ferrari acabou após 13 voltas, com o francês
abandonando por quebra no motor e Capelli por um despiste.
Em Portugal, a boa performance ficou
longe e ambos abandonaram antes da metade da prova. Mas este foi o
golpe de misericórdia para Capelli, que saiu da prova reclamando de
falhas no motor e o mesmo foi usado por Larini em Fiorano dias depois
sem nenhum tipo de mexida. Resultado: demissão por justa causa.
No Japão, Larini assumiu o lugar de
Capelli e foi escolhido para usar o novo sistema de suspensão
semi-ativo, já com o dedo de Barnard. Era uma evolução do sistema
de controle de altura usado durante o ano, mas com o uso de atuadores
hidráulicos e alguma eletronica. Embora ainda em fase experimental e
com o carro mais pesado, o italiano conseguiu andar no mesmo ritmo de
Alesi, que chegou em 5º.
O ano terrível acabou com um 4º lugar
de Alesi e Larini chegando em 11º na Austrália. Um fim menos
melancólico para uma Ferrari totalmente desorganizada.
Em 93, o F92AT acabou sendo revisto por
Barnard e sua equipe e virou o F93A, que iria pelo menos até o meio
da temporada, mas acabou sendo usado o ano todo. E a idéia do fundo
duplo acabou dando certo alguns anos depois....
Hoje, todos nós vemos as laterais dos
carros bastante esculpidas, visando acada vez mais levar o ar menos
“mexido” para a traseira. Ora, o Toro Rosso STR06 de 2011 acabou
usando este conceito e funcionou! Tanto que hoje se tornou quase
obrigatório por quase todo mundo e pode ser notado nos últimos
lançamentos para 2018. Ou seja, o conceito do F92A não era tão
tresloucado assim, só veio no momento errado....Mas pode ser considerada tao ruim quanto a 312T5 de 1980.
Detalhe da lateral do F92A |
Conceito do Toro Rosso STR06, de 2011. |